No sertão ventoso do Nordeste brasileiro, onde gigantes de aço giram incessantes colhendo energia do vento, acontecia a construção de uma nova usina eólica. Aquele canteiro árido, cercado de torres e pás imensas, abrigava uma dupla que chamava atenção de todos: Geraldo, o operador de guindaste, e Bruno, o rigger.
Ambos já tinham anos de estrada. Bruno era ágil, atento e conhecia o guindaste como poucos. Sabia interpretar até o silêncio do equipamento. Geraldo, por sua vez, era uma lenda. Manobrava toneladas com a leveza de quem segura um lápis. Juntos, os dois realizaram içamentos que beiravam o impossível — uma vez, colocaram uma pá de 60 metros no topo de uma torre com um vento que faria qualquer outro operador desistir.
E foi ali, naquele calor de 40 graus, que nasceram a amizade e o respeito. Quando um trabalhava, o outro confiava de olhos fechados.
— Geraldo, cê gira mais 10 graus no sentido anti-horário que ela vai encaixar como luva.
— Confio em tu, Brunão. Bora nessa.
E dava certo. Sempre dava.
A dupla ficou famosa entre os engenheiros e supervisores. Todos queriam Geraldo operando e Bruno sinalizando. Os dois foram chamados até para fazer treinamentos internos — vídeos, fotos, entrevistas. Mas era sempre Geraldo que aparecia nas capas dos relatórios, nos elogios dos diretores, nos coffee breaks de boas-vindas.
Bruno não se importava. Pelo contrário. Sempre dizia:
— Eu sou só o braço que aponta. Ele é o cara que segura.
Quando o elogio vira veneno
Com o tempo, Geraldo passou a se achar indispensável. Pedia camarim no alojamento, chegava atrasado para as reuniões de segurança, começou a dar bronca em rigger, apontar falhas onde não havia. Até o seu capacete ganhou adesivo com “Lenda Viva”.
Bruno, ainda humilde, tentava manter o respeito.
— Geraldo, cê esqueceu de travar o cesto ontem.
— Tá querendo me ensinar agora, é? Tu é rigger, não engenheiro. Fica na tua.
Foi ali que algo começou a rachar.
Numa manhã abafada, receberam a missão de montar três torres em sequência num único dia. Serviço casca grossa, com previsão de ventos fortes à tarde.
Bruno, sempre cuidadoso, pediu para adiar o terceiro içamento.
— O vento tá subindo. Melhor deixar pra amanhã, ou a gente espera mais.
— Tu manda no vento agora, Bruno? Tá com medinho? Eu sou o operador. A decisão é minha. Vamos içar.
E içaram.
O vento, o aço e o silêncio
A pá subiu rangendo, gigante contra o céu. Bruno sinalizava com precisão, mas o vento aumentava. De repente, uma rajada traiçoeira — 47 km/h — sacudiu a pá e ela girou bruscamente.
O rádio chiou. Bruno gritou:
— Abaixa! Abaixa devagar! Vai dar chicote!
Mas Geraldo hesitou. O orgulho falou mais alto que a prudência.
A pá oscilou. Um cabo escapou. O estai se soltou.
Bruno correu para alertar o outro rigger, e nesse instante, um pedaço do estai chicoteou como um açoite e o atingiu em cheio.
Bruno caiu. Silêncio no rádio.
As palavras que não voltam
Geraldo desceu do guindaste com o rosto branco de poeira e culpa. Encontrou o amigo desacordado, sangrando, com o capacete rachado.
O resgate foi rápido, mas o impacto havia sido severo. Bruno ficou em coma. No hospital de Mossoró, máquinas respiravam por ele.
Durante dias, Geraldo ficou ali. Calado. Sem o macacão. Sem os adesivos. Sem o estrelismo.
Ele repetia baixinho:
— Fui eu… fui eu que deixei o vento levar você.
Naquela mesma semana, um envelope chegou no alojamento. Era um relatório de segurança assinado por Bruno, feito dias antes, indicando o risco dos ventos acima de 35 km/h na região das torres. Ninguém havia lido. Só ele se preocupava com esse detalhe.
O final que ninguém queria
Bruno não resistiu. Partiu numa terça-feira de céu limpo. Era estranho — o vento tinha parado naquele dia. Silêncio absoluto no canteiro.
No velório, Geraldo levou o capacete de Bruno e colocou junto do caixão.
— Cê era mais que meu rigger. Era meu equilíbrio. A mão que apontava pra onde eu devia ir.
Ele pediu para nunca mais operar. Disse que se não fosse com Bruno, não seria com mais ninguém.
Geraldo passou a visitar escolas técnicas, dando palestras sobre humildade, respeito e segurança. Dizia que o maior içamento que ele fez na vida foi erguer a memória de um amigo.
Epílogo
Na base da torre onde tudo aconteceu, os colegas fixaram uma placa:
“Aqui, o vento levou um amigo. Mas nos deixou um ensinamento: o aço mais forte é o do respeito.”